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PELA CULTURA É QUE VAMOS…
«Entre o Sono e o Sonho» antologia mais de oitocentos poemas e autores portugueses contemporâneos. Através da poesia estamos diante de diversos registos e de muitas vozes que protagonizam a nossa cultura contemporânea. Através das vozes múltiplas procuramos chegar a uma «língua de várias culturas e a uma cultura de várias línguas». Mais do que país de poetas, temos de compreender-nos como caleidoscópio de influências, de leituras e de sensibilidades. E sentimos ao longo destas páginas a língua, a leitura e a literatura do português.
Eduardo Lourenço diz-nos que “Portugal existe porque existiu e existiu porque Camões o salvaguardou na sua memória, como a dos Hebreus se perpetua na Bíblia”. A nossa identidade ganha vida como ato de memória e de vontade, de lembrança e de desejo. E a saudade tornou-se, assim, garrettianamente o “delicioso pungir de acerbo espinho”. Uma mitologia da imanência (onde a saudade portuguesa se encontra com a morabeza de Cabo-Verde) procura completar as tradições mais antigas. Do classicismo à modernidade fomos proclamando poeticamente a ideia de que era possível vencer o Portugal velho e recuperar a força de uma “regeneração”, aberta, culta e voluntariosa. Redescobrindo Fernando Pessoa, Rei da nossa Baviera, Eduardo Lourenço tem sido um interrogador permanente. E se escolheu o ensaísmo como seu território por excelência, fê-lo para manter em aberto o ponto da sua reflexão, partindo da força e da atualidade da poesia. Muito se tem discutido o sentido e o alcance para Portugal dos dias de hoje, do legado de linhagem singular que vem de Camões, Garrett, Antero, Pessoa e chega à contemporaneidade. Lourenço dá-nos a chave: “todos saíam, ao menos em imaginação, do pequeno Portugal com ideia de lhe abrir o espaço confinado e o desprovincializar». Por isso interroga o “Livro do Desassossego”: «Custa-me imaginar que alguém possa um dia falar melhor de Fernando Pessoa que ele mesmo. Pela simples razão de que foi Pessoa que descobriu o modo de falar de si tomando-se sempre por um outro. E como os deuses lhe concederam um olhar imparcial como a neve, o retrato que nos devolve do fundo do seu próprio espelho brilha no escuro como uma lâmina. Quando encarnada em figuras que parecem vivas – e ele supunha mais vivas do que ele – essa descoberta de si como outro, convertida em jogo da sua verdade, chamou-se Heteronímia».
Essa heteronímia torna-se chave para a revelação das contradições e dos complementos de que somos constituídos como vida e cultura. Afinal, temos de procurar falar, tornando-nos como que outros aos olhos de nós mesmos. E se não possuímos o olhar da neve, ao menos somos chamados a ouvir e a ler, com especial atenção, aqueles que, sendo dos nossos, falam-nos com lucidez e inteligência, com talento que permite superar a normal mediania. Se fomos capazes de ter Camões, Garrett, Cesário, Antero, Pessanha ou Pessoa, mas também Eugénio e Sophia, então somos chamados à atenção e à responsabilidade de os ouvir atentamente e de inserir a sua sensibilidade na nossa razão. O caminho dos mitos à razão obriga a esse cuidado, para despertarmos do sono letárgico, transformando o sonho em força e vontade, em desejo e lembrança.
Guilherme d’Oliveira Martins