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A trama de A Desumanização, reduzida à sua expressão mais simples, é, como se vê, até algo aparentada com o género policial. Só que, entre a trama descarnada e o romance final, há um mundo. E esse mundo é criação da linguagem, de uma linguagem que constantemente se questiona, se interroga, subverte os códigos da normatividade e, com isso, intranquiliza o leitor, desterrando-o de certa zona de conforto que é, no fundo, o lugar da recepção, para paisagens agrestes e inóspitas que o deixam inseguro e o constrangem a permanente adaptação. E, nisto, Valter Hugo Mãe (ou valter hugo mãe, já não sei) é exímio. Já o tinha percebido, e de que maneira, em o remorso de baltazar serapião, significativamente mais impressivo do que esta "desumanização", pela crueza das personagens e pela estranheza das situações. Mas o remorso afasta-se deste na toada arcaizante. O autor esmerou-se aí na recriação de um instrumento de comunicação que nos punha a ouvir Bernardim Ribeiro ou Fernão Lopes. O que se compreende - o cenário não tinha a brancura nem o gélido da paisagem islandesa, e, apesar da carência de informantes, sentia-se que "aquilo" podia ser cá, ter sido cá. Neste romance, apenas a humanidade, a incontornável humanidade das personagens nos é familiar, por muito que o autor se sirva da sua narradora para nos dar dos seus sentimentos e emoções uma imagem que não é a de todos os dias. Mas isso é a literatura. A literatura, que surpreende a fugacidade do instante, a extravagância do acto, a singularidade do pensamento ou da emoção. A personagem, porém, mantém connosco uma relação de proximidade que não engana. Somos feitos da mesma massa (aqui, esqueço deliberadamente a distinção pessoa/personagem), pertencemos à mesma espécie. Somos todos iguais, até no que nos distingue uns dos outros.
(excerto do texto sobre A Desumanização, de Valter Hugo Mãe)